terça-feira, 11 de outubro de 2011

O sentido faz falta?

CONTARDO CALLIGARIS

A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto


É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido - muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

ccalligari@uol.com.br
@ccalligaris
(Folha de S.Paulo 06/10/2011)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Chapeuzinho vermelho sem lobo mau

LUIZ FELIPE PONDÉ

Não há nada no mundo que me dê mais sono do que uma feminista falando sobre o patriarcalismo


Outro dia duas amigas, mulheres bonitas e jovens, emancipadas, se lamentavam porque os homens de hoje não abrem portas, não deixam as mulheres se sentarem, não pagam a conta, enfim, não são cavalheiros.
Claro, nem elas, nem eu assumimos que isso seja uma queixa nova na velha lista de queixas devido à emancipação feminina.
Mas nem tudo são perdas na emancipação feminina, só um ignorante ou um mau-caráter diria uma coisa dessas. Para usar uma expressão do mundo dos recursos humanos em finais de semana de treinamento para motivação (nada mais brega no mundo do que workshops de motivação, não?), a emancipação feminina, como tudo mais, tem seu "lado mais" e seu "lado menos".
Disse a elas o óbvio: "Mas, para receber esse tratamento, vocês têm de obedecer, meninas!". Rimos muito com isso.
Claro que, antes que algum inteligentinho berre dizendo que esta é uma observação machista, a expressão "obedecer" aqui nada tem a ver com "Amélia traga minha cerveja já".
A expressão "obedecer" aqui tem mais a ver com aquele gostinho gostoso do jogo homem-mulher, entre quatro paredes, no qual homens são lobos maus e mulheres chapeuzinhos vermelhos (ou meninas da capa vermelha como está mais na moda falar depois do recente filme).
Tenho de explicar tudo porque umas das coisas que a "crítica ideológica" da relação entre os sexos causa em quem acredita nela (além da chatice usual) é a perda do senso de sutileza.
Quando os homens não podem pensar nas mulheres como objetos sexuais no seu dia a dia (o que não implica ser mal-educado, aliás, falta de educação aqui é antes de tudo falta de conhecimento do "objeto em questão", objeto este que demanda cuidados na "manipulação" porque é inclusive "explosivo") sem que alguma chata fale palavras como "machismo", "patriarcalismo", "blá-blá-blá", acaba-se perdendo a vontade de "mandar na Chapeuzinho Vermelho". O lobo mau desiste de ser mau.
O que as mais chatinhas não entendem é que público e privado se misturam para além de suas críticas ao "poder masculino". E que, à medida que as mulheres se tornam "iguais" aos homens, muitos acham que não há porque as desejar tanto assim.
Não há nada no mundo que me dê mais sono do que uma feminista. Principalmente quando o assunto é a tal crítica do patriarcalismo (o "poder masculino").
Interessante como tem gente que, além de apontar os abusos reais que existem no mundo por conta de os homens serem mais fortes do que as mulheres (atenção: não esqueça, cara leitora da capa vermelha, que essa força maior do homem é parte do lobo mau que a menina da capa vermelha em você tanto gosta...), ama dizer que mesmo a poluição é fruto do patriarcalismo. Pode uma coisa dessas?
Isto é, "sociedades matriarcais" não poluiriam o mundo porque não seriam gananciosas e acumulativas.
Alguém já olhou um armário de uma mulher e contou o número de pares de sapato e de vestidos que ela tem? Nada acumulativas. Ou o número de batons?
Nada contra, já disse muitas vezes, a vaidade numa mulher é sua segunda pele, só mulheres mal-educadas ou muito infelizes não são vaidosas. Quanto mais cores diferentes de batom, melhor.
Mas as "invejosas do falo" (diriam as psicanalistas mais clássicas) adoram dizer que "tudo é política", logo, "tudo é ideologia patriarcal".
Se as mulheres se sentem sozinhas, isso é uma questão política. Se alguém vomitar de medo, isso é uma questão política. Se as mulheres têm pressão arterial mais baixa do que os homens, isso é culpa do patriarcalismo (logo, é política), porque foram os homens que escreveram os tratados de fisiologia, logo...
Enfim, nada mais machista por parte da seleção natural do que fazer com que as mulheres fiquem grávidas e não os homens, porque assim as obrigou a serem mais seletivas no sexo, porque afinal pagam caro por ele.
Ou será que isso também é opressão patriarcal? Úteros e ovários são a prova cabal de que o universo é patriarcal? A dor do parto é parte desse plano de opressão?
Será que, se criticarmos bem o patriarcalismo, os homens ficarão grávidos e não mais as mulheres?

ponde.folha@uol.com.br
(Fonte: Folha de S.Paulo 03/10/2011)