sábado, 20 de agosto de 2011

Inflação eleva "maquiagem" de produtos

Com alta de alimentos, empresas reduzem quantidade sem baixar preço; para especialistas, prática pode ser abusiva
Mudança tem de ser informada de forma "ostensiva'; letras miúdas estão entre as reclamações

Fotos Adriano Vizoni/Folhapress
Filtro de café do Carrefour, reduzido de 40 para 30 unidades

LEANDRO MARTINS
DE RIBEIRÃO PRETO

A alta da inflação intensificou a prática de empresas de reduzir o peso ou o volume dos produtos sem a diminuição proporcional do preço, muitas vezes sem informar o consumidor de forma clara (a chamada "maquiagem"), segundo representantes do varejo ouvidos pela Folha.
Com o aumento de custos, em vez de elevar o valor do produto, o fabricante corta a quantidade vendida.
Levantamento feito pela Folha em supermercados na semana passada encontrou uma dúzia de produtos com redução no volume.
A lista inclui iogurtes, farinha, suco, gelatina, atum, aveia, água mineral e até filtro de papel para café.
Em todos os produtos, havia informação na embalagem sobre a redução, como manda a lei, mas na maioria dos casos o anúncio ocorre em letras miúdas. Com destaque, só 3 dos 12 produtos.
O DPDC (Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor), do Ministério da Justiça, diz que as reduções de volume sem barateamento proporcional podem significar prática abusiva.
Segundo o órgão, o abuso pode ser enquadrado em artigos do Código de Defesa do Consumidor que vedam exigir do cliente vantagens excessivas e elevar preço de produtos sem justificativa.
O departamento afirma, no entanto, que não há na legislação texto que cite explicitamente que a redução de peso tem de ser acompanhada por queda de preço.
Tanto o DPDC como o Procon afirmam, no entanto, que não há ilegalidade na redução quando ela é justificada e informada de forma "ostensiva" ao consumidor.
Na lista obtida pela Folha, o caso de maior redução percentual de produto é o da gelatina Sol, cujo volume caiu 59% -de 85 g para 35 g.
O fabricante J.Macêdo diz que houve mudança na fórmula, sem prejuízo ao rendimento final.

TRANSPARÊNCIA
De acordo com o assistente de direção da Fundação Procon-SP, Carlos Alberto Nahas, todas as informações de mudança devem aparecer de forma ostensiva e transparente na embalagem. "Letra miúda não é informação."
Portaria do Ministério da Justiça, de 2002, criou regras para a redução de quantidade. A embalagem deve informar, em tamanho e cor adequados, o volume anterior e o atual e a redução em valores absolutos e percentuais.
As letras miúdas das embalagens estão entre as reclamações. "No meu caso, quando ocorre essa redução, acaba passando despercebido", disse a educadora social Márcia Regina Soares, 41.
"O problema é que normalmente essa mudança nunca é proporcional. Às vezes o preço até aumenta", afirmou a arquiteta Carla Sette, 42. "É um descaso, a gente se sente ofendido."


MEMÓRIA
PRÁTICA TEVE CASO SIMBÓLICO HÁ UMA DÉCADA

No início dos anos 2000, houve uma série de ações do Ministério da Justiça para coibir a maquiagem. Um dos mais famosos foi a redução, sem nenhum tipo de informação prévia e sem queda de preço, nos rolos de papel higiênico, que passaram de 40 metros para 30 metros.


E EU COM ISSO?
Cliente deve ficar atento à embalagem

Como a legislação permite que as empresas modifiquem livremente seus produtos, desde que informem a alteração na embalagem, especialistas em direito do consumidor afirmam que o cliente deve estar atento aos textos impressos nos rótulos das mercadorias.
"A rotulagem é a comunicação do fornecedor com o consumidor", afirma Carlos Alberto Nahas, assistente de direção do Procon de São Paulo.
Para Maria Inês Dolci, coordenadora da ProTeste Associação de Consumidores e colunista da Folha, além de estarem atentos à embalagem, os consumidores devem acompanhar a evolução de preço.
Só assim, afirma Dolci, é possível que o consumidor saiba se a mercadoria que "encolheu" também está custando menos.
A coordenadora da ProTeste diz que a pior situação é aquela em que a mudança de volume do produto ocorre sem que haja nenhum tipo de comunicado por parte da empresa.
"Aí é omissão de dado, é uma violação da confiança do consumidor. Além disso, é uma ilegalidade e uma fraude no mercado", afirma Dolci. (LM)


OUTRO LADO
Empresas dizem se adequar ao mercado
DE RIBEIRÃO PRETO

Mudança de fórmula, adequação ao mercado e reformulação visual. Esses são alguns dos argumentos de fabricantes para a redução no volume dos produtos.
As indústrias afirmam que respeitam as regras, mas poucas falam sobre o vínculo entre a alteração e o preço.
Dos casos encontrados pela Folha nas prateleiras dos supermercados, de 9 fabricantes, apenas 3 afirmaram que a redução da mercadoria teve queda de preço proporcional.
No caso da gelatina Sol, cujo peso foi reduzido em 59%, o fabricante J.Macêdo disse que houve mudança na fórmula, mas que o rendimento final do produto permaneceu o mesmo.
Argumento semelhante foi usado pela Kraft, responsável pelo suco Tang, cujo peso foi reduzido de 35 gramas para 30 gramas (-14,3%).
Na relação de produtos da gigante PepsiCo, a diminuição envolve o atum ralado light Coqueiro, de 130 gramas para 120 gramas (-7,7%), e a aveia em flocos finos Quaker, de 500 gramas para 450 gramas (-10%).
A PepsiCo disse apenas que informou o corte de forma "transparente", mas não informou a razão.
Já a Yoki Alimentos reduziu a farofa pronta suave de 300 gramas para 250 gramas (diminuição de 16,7%). A assessoria da empresa não deu detalhes.

REFORMULAÇÃO
Na linha da "adequação do produto ao mercado", a Danone, o Pão de Açúcar e a Coca-Cola "encolheram" produtos.
A Danone diminuiu as bandejas de iogurte da marca própria e da linha Paulista, de 600 gramas para 540 gramas -baixa de 10%.
A companhia diz que o novo peso é um padrão do mercado, mas não revelou se o preço recuou.
Já a Coca-Cola diz que, reformulando a identidade visual, reduziu o volume da água mineral Crystal de 510 ml para 500 ml. A empresa diz que, como a redução foi de "apenas" 2%, o preço final da água não foi alterado.
O Pão de Açúcar, por sua vez, diminuiu a quantidade de coadores de papel para café da marca própria Qualitá. A caixa do produto passou a conter 30 unidades, ante 40 filtros -menos 25%.
A empresa diz que a mudança ocorreu para garantir competitividade e afirmou que houve redução de preço.
O Carrefour também reduziu seu filtro de papel para café, de marca própria, de 40 para 30 unidades.
A empresa disse que o preço foi readequado proporcionalmente.
Outra empresa que afirmou ter reduzido o valor final da mercadoria foi a Nestlé, cujos iogurtes naturais (desnatado, integral e com sabores) foram diminuídos em 15%. (LM)

ANÁLISE
Mudança tem de ser informada de forma clara na embalagem
ARTHUR ROLLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A prática abusiva de "maquiagem de produtos" consiste na redução quantitativa do conteúdo da embalagem, sem aviso ao consumidor.
Na maioria das vezes, o preço anteriormente praticado é mantido, enganando o consumidor, que adquire menor quantidade pelo mesmo preço. Trata-se de forma de aumentar o preço sem que o consumidor perceba.
Essa prática não é nova e já aconteceu em diversas outras oportunidades, levando o Ministério da Justiça a baixar a portaria de número 81, de 23 de janeiro de 2002.
Segundo as regras estipuladas, embora os fornecedores tenham o direito de reformular seus produtos, devem informar adequadamente os consumidores a respeito. Todo aumento de preço leva o consumidor à reflexão, podendo desencadear a opção por um produto de empresa concorrente.
A portaria obriga que qualquer alteração quantitativa de produtos seja informada de forma clara e ostensiva.
Traduzindo: o consumidor, ao olhar para a embalagem, deve perceber que houve alteração quantitativa. Devem ser informadas a quantidade do produto, antes e depois da modificação, e a representatividade do aumento ou da redução, em termos absolutos e percentuais.
O período mínimo de veiculação dessas informações é de três meses, a fim de que o consumidor se habitue com as alterações.
Além de não cumprirem as regras, algumas empresas mudam as embalagens dos produtos para dificultar ainda mais a percepção da diminuição da quantidade.
Não basta informar a diminuição do conteúdo mediante letras pequenas no canto da embalagem. O consumidor deve ver e entender.
Com o aumento da inflação, esse expediente de maquiagem está mais comum. Empresas que adotam esse expediente podem ser multadas pelo DPDC -Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça- e pelos Procons em mais de R$ 3 milhões. Cabe ao consumidor denunciar essas práticas, a fim de que os procedimentos administrativos sejam instaurados, e o infrator, punido. Só assim esse expediente tenderá a diminuir.
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ARTHUR ROLLO, 35, é advogado especialista em direito do consumidor.

(Fonte: Folha de S.Paulo)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A redescoberta do cambuci

Matéria sobre meu bairro, o velho Cambuci...

QUANDO começou a trabalhar no bairro, em 2007, Eliana Peixe queria saber de onde vinha o nome Cambuci. Disseram-lhe que, no passado, havia por lá muitos pés de cambuci -era abundantemente usado na culinária local e na aguardente dos tropeiros. Resolveu fazer uma investigação e descobriu que, pelo menos no bairro, aquela árvore estava em extinção. "Só localizamos uns poucos pés."
Daí começaria um retorno culinário. "O gosto da fruta e das folhas do cambuci está voltando para as casas e restaurantes."
É uma receita que, por acaso, acabou misturando culinária com projetos digitais.

A história começa numa gráfica desativada da prefeitura, com suas máquinas que serviriam apenas para museus. O único sinal de modernidade no entorno daquele prédio são os grafites feitos pelos OsGêmeos, que usam o bairro, onde moram, como um misto de ateliê e galeria ao ar livre.

Eliana foi convidada pela prefeitura para transformar aquele espaço, batizado de Incubadora de Projetos Sociais, em um centro de novas mídias para a comunidade, especialmente os jovens -e, agora, convivem as aposentadas impressoras, convertidas em decoração, com computadores e programas de última geração, fornecidos por causa de parcerias com empresas de telecomunicação.
Como fazia parte do projeto uma relação mais próxima com a vizinhança, apareceu a dúvida sobre o nome do bairro. Aprenderam que os bandeirantes tinham por hábito jogar a polpa da fruta na aguardente para tomar em suas viagens pelo interior do país -é a árvore que simboliza a cidade de São Paulo.

Tais informações foram o suficiente para que colocassem a mão na terra. "Decidimos que plantaríamos pés de cambuci." Desde junho deste ano, foram plantadas 150 árvores pelas praças e canteiros.

Mas a ideia acabou na cozinha das casas e dos restaurantes.
Enquanto as árvores não crescem, importaram-se folhas e polpas, que serviram para que senhoras aprendessem como fazer geleias, tortas e biscoitos. Restaurantes entraram na onda -um deles incorporou no cardápio, com destaque para "nhoque ao molho de cambuci". Já está em fase de experimentação até mesmo uma pizza.
Visitantes são recebidos no local com sorvete. De cambuci, claro.
Como as senhoras frequentam esse centro de novas tecnologias de informações, jovens vão ensiná-las a fazer um blog para divulgar as receitas -um dos projetos capacita jovens para ensinar informática aos idosos.

A descoberta do bairro tem sabor e cor. Os jovens querem fazer uma visita virtual pelo Cambuci usando como trajeto os desenhos dos mundialmente reverenciados OsGêmeos, que estão espalhados nos muros -é um jeito de, sem exagero, levar o gosto local ao mundo. (GILBERTO DIMENSTEIN/Folha de S.Paulo)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A tentação totalitária

LUIZ FELIPE PONDÉ

Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome dele

VOCÊ SE considera uma pessoa totalitária? Claro que não, imagino. Você deve ser uma pessoa legal, somos todos.
Às vezes, me emociono e choro diante de minhas boas intenções e me pergunto: como pode existir o mal no mundo? Fossem todos iguais a mim, o mundo seria tão bom... (risadas).
Totalitários são aqueles skinheads que batem em negros, nordestinos e gays.
Mas a verdade é que ser totalitário é mais complexo do que ser uma caricatura ridícula de nazista na periferia de São Paulo.
A essência do totalitarismo não é apenas governos fortes no estilo do fascismo e comunismo clássicos do século 20.
Chama minha atenção um dado essencial do totalitarismo, quase sempre esquecido, e que também era presente nos totalitarismos do século 20.
Você, amante profundo do bem, sabe qual é? Calma, chegaremos lá.
Você se lembra de um filme chamado "Um Homem Bom", com Viggo Mortensen, no qual ele é um cara legal, um professor universitário não simpatizante do nazismo (o filme se passa na Alemanha nazista), e que acaba sendo "usado" pelo partido?
Pois bem. Neste filme, há uma cena maravilhosa, entre outras. Uma cena num parque lindo, verde, cheio de árvores (a propósito, os nazistas eram sabidamente amantes da natureza e dos animais), famílias brincando, casais se amando, cachorros correndo, até parece o Ibirapuera de domingo.
Aliás, este é um dos melhores filmes sobre como o nazismo se implantou em sua casa, às vezes, sem você perceber e, às vezes, até achando legal porque graças a ele (o partido) você arrumaria um melhor emprego e mais estabilidade na vida.
Fosse hoje em dia, quem sabe, um desses consultores por aí diria, "para ter uma melhor qualidade de vida".
E aí, a jovem esposa do professor legal (ele acabara de trocar sua esposa de 40 anos por uma de 25 -é, eu sei, banal como a morte) o puxa pelo braço querendo levá-lo para o comício do partido que ia rolar naquele domingão no parque onde as famílias iam em busca de uma melhor qualidade de vida.
Mas ele não tem nenhuma vontade de ir para o comício porque sente um certo "mal-estar" com aquilo tudo. Mas ela, bonita, gostosa, loira, jovem e apaixonada (não se iluda, um par de pernas e uma boca vermelha são mais fortes do que qualquer "visão política de mundo"), diz: "meu amor, tanta gente junta querendo o bem não pode ser tão mal assim".
É, meu caro amante do bem, esta frase é uma das melhores definições do processo, às vezes invisível, que leva uma pessoa a ser totalitária sem saber: "quero apenas o bem de todos".
Aí está a característica do totalitarismo que sempre nos escapa, porque ficamos presos nas caricaturas dos skinheads: aquelas pessoas, sim, se emocionavam e choravam diante de tanta boa vontade, diante de tanta emoção coletiva e determinação para o bem.
Esquecemos que naqueles comícios, as pessoas estavam ali "para o bem".
Se você tem absoluta certeza que "você é do bem", cuidado, um dia você pode chorar num comício achando que aquilo tudo é lindo e em nome de um futuro melhor.
E se essa certeza vier acompanhada de alguma "verdade cientifica" (como foi comum nos totalitarismos históricos) associada a educadores que querem "fazer seres humanos melhores" (como foi comum nos totalitarismos históricos) e, finalmente, se tiver a ambição política, aí, então, já era.
Toda vez que alguém quiser fazer um ser humano melhor, associando ciência (o ideal da verdade), educação (o ideal de homem) e política (o ideal de mundo), estamos diante da essência do totalitarismo.
O que move uma personalidade totalitária é a certeza de que ela está fazendo o "bem para todos", não é a vontade de destruir grupos diferentes do dela.
Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome desse bem total.
O melhor antídoto para a tentação do totalitarismo não é a certeza de um "outro bem", mas a dúvida acerca do que é o bem, aquilo que desde Aristóteles chamamos de prudência, a maior de todas as virtudes políticas.
Não confio em ninguém que queira criar um homem melhor.

ponde.folha@uol.com.br
(Folha de S.Paulo 18/07/2011)