Respeito os que creem. A ciência não tem agenda contra a religião
Marcelo Gleiser
A pergunta que mais me fazem quando dou palestras, ou mesmo quando me mandam e-mails, é se acredito em Deus. Quando respondo que não acredito, vejo um ar de confusão, às vezes até de medo, no rosto da pessoa: "Mas como o senhor consegue dormir à noite?".
Não há nada de estranho em perguntar a um cientista sobre suas crenças. Afinal, ao seguirmos a velha rixa entre a ciência e a religião, vemos que, à medida em que a ciência foi progredindo, foi também ameaçando a presença de Deus no mundo. Mesmo o grande Newton via um papel essencial para Deus na natureza: Ele interferia para manter o cosmo em xeque, de modo que os planetas não desenvolvessem instabilidades e acabassem todos amontoados no centro, junto ao Sol. Porém, logo ficou claro que esse Deus era desnecessário, que a natureza podia cuidar de si mesma. O Deus que interferia no mundo transformou-se no Deus criador: após criar o mundo, deixou-o à mercê de suas leis.
Mas, nesse caso, o que seria de Deus? Se essa tendência continuasse, a ciência tornaria Deus desnecessário?
Foi dessa tensão que surgiu a crença de que a agenda da ciência é roubar Deus das pessoas. Um número espantoso de pessoas acha mesmo que esse é o objetivo dos cientistas, acabar com a crença de todo mundo. Os livros de Richard Dawkins e outros cientistas ateus militantes, que acusam os que creem de viverem num estado de delírio permanente, não ajudam em nada a situação. Mas será isso mesmo o que a ciência pretende? Será que esses fundamentalistas ateus falam por todos os cientistas?
De modo algum. Eu conheço muitos cientistas religiosos, que não veem qualquer conflito entre a sua ciência e a sua crença. Para eles, quanto mais entendem o Universo, mais admiram a obra do seu Deus. (São vários.) Mesmo que essa não seja a minha posição, respeito os que creem. A ciência não tem uma agenda contra a religião. Ela se propõe simplesmente a interpretar a natureza, expandindo nosso conhecimento do mundo natural. Sua missão é aliviar o sofrimento humano, aumentando o conforto das pessoas, desenvolvendo técnicas de produção avançadas, ajudando no combate às doenças. O "resto", a bagagem humana que acompanha e inspira o conhecimento (e que às vezes o atravanca), não vem da ciência como corpo de saber, mas dos homens e das mulheres que se dedicam ao seu estudo.
É óbvio que, como já afirmava Einstein, crer num Deus que interfere nos afazeres humanos é incompatível com a visão da ciência de que a natureza procede de acordo com leis que, bem ou mal, podemos compreender. O problema se torna sério quando a religião se propõe a explicar fenômenos naturais; dizer que o mundo tem menos de 7.000 anos ou que somos descendentes diretos de Adão e Eva, que, por sua vez, foram criados por Deus, é equivalente a viver no século 16 ou antes disso. A insistência em negar os avanços e as descobertas da ciência é, francamente, inaceitável. Por exemplo, um número enorme de pessoas se recusa a aceitar que o homem pousou na Lua. Quando ouço isso, fico horrorizado. Esse feito, como tantos outros, deveria ser celebrado como um dos marcos da civilização, motivo de orgulho para todos nós.
Podemos dizer que existem dois tipos de pessoa: os naturalistas e os sobrenaturalistas. Os sobrenaturalistas veem forças ocultas por trás dos afazeres dos homens, vivendo escravizados por medos apocalípticos e crenças inexplicáveis. Os naturalistas aceitam que nunca teremos todas as respostas.
Mas, em vez de temer o desconhecido, abraçam essa ignorância como um desafio e não uma prisão. É por isso que eu durmo bem à noite.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "Criação Imperfeita"
(Fonte: Folha de S.Paulo)
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