segunda-feira, 19 de julho de 2010

Deus existe?

Por Marcelo Coelho

Até mesmo uma opção resoluta pelo ateísmo pode envolver ambiguidades


QUANDO A pergunta é simples demais, o santo desconfia. A editora Planeta lançou recentemente um livro fascinante e curto (125 páginas), que, sob o título "Deus Existe?", transcreve um diálogo público entre um filósofo ateu, Paolo Flores d'Arcais, e ninguém menos do que o cardeal alemão Joseph Ratzinger.
O encontro se deu num teatro, em Roma, em fevereiro de 2000 -cinco anos antes, portanto, de Ratzinger tornar-se Bento 16.
Apesar do título do livro, a questão sobre a existência de Deus não se coloca de forma direta -e talvez seja melhor assim. O debate entre um ateu e um cardeal pode ser bem mais complexo do que sugere a pergunta. Uma formulação muito sumária, do tipo "Deus existe?", pode provocar respostas simples demais: "Sim", "não sei" ou "não".
Pessoalmente, desde criança marco a terceira alternativa. Mas até mesmo uma opção resoluta pelo ateísmo pode envolver ambiguidades. Posso dizer, por exemplo: "Não acredito que Deus exista". Ou: "Acredito que Deus não exista".
Posso, porém, observar apenas: "Quem diz que Deus existe não tem prova nenhuma do que está dizendo", e acrescentar: "Só acredito no que pode ser provado".
E, nesse momento, o bom Ratzinger já estará esfregando as mãos de contentamento apostólico. Pois é inegável que acredito em muitas coisas que não sei bem como poderiam ser provadas cientificamente. Acredito que exista uma coisa chamada beleza, por exemplo.
Se me pedirem para apontá-la, posso citar uma série de exemplos, uma série de manifestações da beleza no cotidiano; o crente pode apontar outras tantas manifestações de Deus, e ninguém provou nada com isso.
No seu diálogo com Paolo Flores d'Arcais, entretanto, Ratzinger dá um passo a mais. Certo, diz o cardeal, a existência de Deus não pode ser provada pelo "método positivo", isto é, científico. Mesmo sem ter provas, entretanto, a fé em Deus não é puramente irracional. Ao contrário, a razão está do lado dos católicos nesse caso.
Seu interlocutor resiste bravamente a esse golpe. Tolerante e ateu, Flores d'Arcais aceita que alguém simplesmente diga, como o velho teólogo Tertuliano, "acredito porque é absurdo". Ou que lembre Kierkegaard: "A fé começa justamente onde termina o pensamento".
Mas Ratzinger não quer limitar a crença em Deus aos porões sentimentais da alma. A tradição católica, diz ele, foi uma espécie de "pré-Iluminismo" contra as irracionalidades pagãs.
E a ideia de um Deus criador do céu e da Terra, prossegue, é indispensável para qualquer pessoa que preze a razão. Sem um logos, um verbo que está na origem de tudo, teríamos de admitir que o mundo, a natureza, o destino humano, não passa de fruto do acaso, não tem sentido nenhum, é puramente absurdo. Como então preservar qualquer "racionalidade" com esses pressupostos?
Num artigo incluído nessa edição, Ratzinger formula o problema com mais eloquência: "Pode a razão renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos sem abolir a si mesma?" Meu ateísmo -e meu racionalismo- respondem que sim. A medicina sabe perfeitamente que, com todos os seus avanços, não elimina o fato de que todos irão morrer. Reconhecer a "prioridade" da morte não faz com que a medicina esteja pronta a "abolir-se a si mesma"...
Flores d'Arcais não sai vitorioso, entretanto, do debate com Joseph Ratzinger. Quando se trata de defender princípios universais e inalienáveis, como os direitos humanos, nosso ateu de plantão cai na armadilha do relativismo: muitas sociedades admitiram o homicídio, a antropofagia...
Ratzinger insiste, com razão, que se muitas sociedades fizeram coisas detestáveis, isso não torna casuais, contingentes, os direitos humanos. D'Arcais também não gostaria que isso acontecesse, mas se confunde no debate.
O problema, a meu ver, teria de ser definido de outra forma. Se existem direitos universais, e se um termo como "dignidade humana" precisa ter sentido, a questão é saber como lhes dar fundamento. Mas esse fundamento, que deve ser a-histórico, absoluto, transcendente, não precisa fazer apelo ao "sobrenatural" -e negar o sobrenatural é algo que, pelo que li, não está nas cogitações de Ratzinger, com tudo o que concede às conquistas do Iluminismo.

coelhofsp@uol.com.br
(Publicado na Folha de S.Paulo - 13/01/2010)

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