Rubens Marujo
Ao contrário das pessoas que trabalham normalmente, quem mora em albergue ou na rua detesta os fins de semana, principalmente domingos e feriados. Além de ter menos gente nas ruas, a tristeza bate forte e nos obriga a refletir mais. Isso acontecia freqüentemente comigo. Outro grande problema é que boa parte das bocas de rango existentes pela cidade fecham. Bocas de rango são lugares que oferecem refeições gratuitas para os pobres. E é bom lembrar que, na Capital, existem dezenas delas. Só no Centro deve haver, aproximadamente, umas vinte. Isso incluindo pessoas que, generosamente, se dedicam à causa social, no anonimato, sem fazer alarde.
Assim é, por exemplo, com a senhora japonesa que distribui café da manhã com pão e manteiga na praça da Sé, aos domingos de manhã; outro grupo de senhoras japonesas que distribui lanches no Anhangabaú; e os espíritas, que levam sopa a quem vive sob o Minhocão, além de albergues e outras casas. As que funcionam, naturalmente, são mais disputadas. Formam-se filas enormes. Isso acontece porque o número de moradores de rua cresce sem parar. Pouca gente sabe disso, mas da mesma forma que a polícia prende dezenas de pessoas por dia, outras saem livres. E saem em condições deploráveis. Jovens que cometeram pequenos delitos, mas ficaram com a ficha suja, não arrumam emprego devido aos antecedentes criminais e só lhes resta a rua para sobreviver.
Vergonha – As ruas de São Paulo estão ficando cada vez mais povoadas por eles. Conheci vários e deu para perceber que, muitos, possuem boa índole. Trajando apenas uma bermuda e uma camiseta, exibem os pés rachados, sangrando de tanto andar à procura do que comer, do que vestir. E acabam descobrindo as bocas de rango. Mas há ainda famílias inteiras que são despejadas, casais com filho recém-nascido, enfim todo tipo de gente que da vida só conhece vicissitude e amargura.
Confesso que muitas vezes sentia vergonha ao conversar com eles. Nasci em berço de ouro, tive instrução, boa educação e, acima de tudo, uma profissão. Mas estava ali disputando um lugar na fila com aquelas pessoas humildes, com pouca ou sem nenhuma instrução. Meu astral piorava diante da resignação e a força que aquelas pessoas demonstravam. Sentia-me humilhado. Minha mente parecia girar como um carrossel, com os seguintes dizeres: fracassado, inútil, não serve para nada. Sentia vergonha até de manchar o nome da profissão que sempre exerci.
- O sr. mora em albergue?
- Sim, estou morando, porque?
- Mas o sr. não tem cara de quem bebe. Por acaso o sr. é drogado?
- Também não, respondia eu, sem graça.
-Então o que o sr. está fazendo aqui? O sr. tem cara de doutor, fala muito bem, aqui não é lugar para o sr.
- Paciência, coisas da vida.
- Mas o que o sr. faz? O que aconteceu?
- Sou jornalista, fui imprevidente, não fiz a lição de casa e estou aqui.
Eu ia chorar – Esses diálogos se repetiram várias vezes nas filas das bocas de rango. Às vezes eu ia chorar. Escolhia a praça Pérola Byington, ali na avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde fica o teatro Imprensa e o Hospital da Mulher. Sentava num banco, abaixava a cabeça e chorava arrependido.
- Agora, não adianta chorar, dizia para mim mesmo. Busque força para descascar o abacaxi que você mesmo plantou, falava comigo.
Disputa – As bocas de rango são muito concorridas. Uma das principais é a Casa Dom Orione, que fica na rua 13 de Maio, no Bexiga. É mantida por voluntários que frequentam a igreja N.S. de Achiropita (Xeropita, para os moradores de rua).
O roteiro é o seguinte: os albergados saem lá pelas 7h da manhã e vão tomar café lá, que é mais reforçado que o do albergue. Depois, esperam até cinco horas para almoçar, às 12h. Na Dom Orione é tudo muito bem organizado. Ninguém fica na rua. Todos esperam num amplo saguão, com cadeiras e televisão. Do lado de fora há tanques para lavar roupa e banheiros com chuveiros. Tudo limpinho, bastante higiênico. Para se almoçar ali é preciso pegar uma senha. Os responsáveis pela casa atendem 180 pessoas.
Outro lugar famoso é o Refeitório Comunitário Penaforte Mendes, que fica na rua de mesmo nome, também no Bexiga. Lá é preciso se cadastrar e são atendidas cerca de 300 pessoas por dia.
Ontem fui lá entrevistar alguns frequentadores. Eles não gostam de fotografias. Têm vergonha ou medo. Apesar da insistência, não obtivemos muito sucesso para fotografá-los almoçando.
Maloqueiro e corintiano – Denilson de Oliveira, 26 anos, havia acabado de almoçar. Mora na rua e, para sobreviver, vende pastilhas. Trabalhou durante oito anos como palhaço no circo Orlando Orfei, viajou por toda a América Latina e fala muito bem o castelhano. Ontem ele estava com pressa. Queria vender tudo rápido para assistir o jogo do Corinthians, à noite, no Pacaembu.
Disse a ele que já havia morado num albergue e também era corintiano. Nem poderia ser diferente - disse a ele - maloqueiro é maioria na torcida do Corinthians. Ele riu. É verdade: jornalista, maloqueiro e corintiano. Conversamos também com Roberto Gomes, 30 anos, auxiliar de pintura. Está sobrevivendo com a venda de algodão-doce e mora no albergue Pedroso, localizado no viaduto do mesmo nome, sobre a avenida 23 de Maio. Mantido pela Igreja Metodista, esse albergue é bem conceituado em todos os sentidos. Por isso mesmo, conseguir uma vaga ali é difícil. "Tive sorte e me sinto bem lá", disse, enquanto aguardava a ordem para entrar na boca de rango.
Fiz questão de passar na Casa Irmão Faria, que fica na rua Jaceguai, uma ruazinha paralela ao viaduto Jacareí. Lá, eles servem sopa, todos os dias, às 14h. Ali não é necessário pegar senha nem se cadastrar. Junto com o pessoal que mora na rua até o cachorro entra. E dá para repetir a sopa de legumes, doada pelo Sacolão do bairro quantas vezes for possível. Um dia, assoei o nariz com meu lenço e os meus companheiros me chamaram a atenção: "Isso não se faz à mesa", me disseram.
O albergue mais conceituado, em todos os sentidos, é o Arsenal da Esperança. Fica no bairro da Mooca, perto da estação Bresser do metrô. Aos domingos e feriados abre as suas portas às 14h, impedindo que os moradores passem o dia inteiro na rua. O mesmo ocorre quando chove. Está equipado com duas ou três ambulâncias, tem médico e enfermeiras. Oferece vários cursos para os albergados, entre eles, de teatro. Mantém convênios com empresas que oferecem trabalhos temporários, oferece emprego para os albergados que lá residem, remunerando e fazendo registro na Carteira de Trabalho. O sistema de identificação digital evita a formação de enormes filas e conta ainda com quadras de futebol de salão.
Todos os albergados que por lá já passaram falam muito bem dele. Eu mesmo estava pensando em me transferir para lá, caso continuasse por mais tempo tendo de morar num albergue. Era administrado por pessoas da comunidade italiana, com verbas do governo do Estado. Agora, esse albergue passou para as mãos da Prefeitura e seus moradores temem que a qualidade dos serviços oferecidos caia.
O albergue São Camilo, administrado por religiosos que também cuidam de um hospital com o mesmo nome é menor, mas o tratamento oferecido é mais humano.
O pior de todos era o São Francisco, onde fiquei. Ele foi desativado depois de 8 anos (nunca se tomou uma providência antes para tirá-lo debaixo do viaduto Jacareí). Era uma pocilga. Lembrava muito Auschwitz. Agora, funciona na Baixada do Glicério, mas continua superlotado e muito criticado por seus moradores. Encontrei com alguns deles ontem na Praça da Sé. Eles não gostam de ser identificados, com medo de serem cortados e irem de vez para a rua. Mas ainda reclamando das humilhações a que continuam sendo submetidos.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
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