sexta-feira, 7 de maio de 2010

De pecados e crimes

ROSELI FISCHMANN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O noticiário sobre pedofilia, atingindo religiosos da Igreja Católica, inclusive da alta hierarquia, traz tantos dados que chocam, que o Vaticano publicou editorial atacando a imprensa internacional por cumprir seu papel, qual seja, o de informar. Acostumada a tratamento diferenciado, muitas vezes privilegiado, por parte da mídia, com desvantagem para os demais grupos religiosos, a hierarquia católica reage de forma hostil à impossibilidade que teve a imprensa de postar-se como cúmplice de crimes inaceitáveis, por omissão.
É certo que as relações das religiões com os poderes terrenos são assunto delicado e polêmico. Investidos de aura suprahumana, para os que crêem neste ou naquele culto, com facilidade pode ocorrer de buscarem transbordar, para o plano meramente político, o poder espiritual que lhes é atribuído pela religião, como instituição humana.
Decorre daí a facilidade de, em nome da divindade, fazer acordos internacionais (como a concordata com a Santa Sé a que se curvaram políticos do Brasil), desenvolver articulações políticas e facilmente ganhar espaço, onde outros dependem do voto e da legitimidade. O uso do poder espiritual para obter benesses humanas é tanto mais perigoso, quanto mais confunde argumentos que invocam caridade, para alcançar privilégios materiais, suprimindo direitos de outros.
Ao potencializar o poder espiritual pela união ao poder político, mera e complexamente humano, a expectativa é de reunir os benefícios das duas esferas. Engendrada nas altas hierarquias, repercute em outros níveis de forma imprevisível. Enquanto alguns religiosos tomam o compromisso de defesa dos direitos, outros enveredam por caminho oposto. Copiando a má prática humana na política, esperam a máxima visibilidade dos méritos e a completa impunidade dos erros. Quando ocorre alguma "escorregada", que em outros seres humanos, "comuns", será chamado de crime, considera-se "natural" a invisibilização e o silêncio, garantindo a impunidade, pelo desconhecimento público.
Vale lembrar que a Igreja Católica, por sua associação milenar, desde Constantino, ao poder terreno, tem digerido mal a independência e autonomia laica dos Estados em relação aos cultos, processo fortalecido a partir da Revolução Francesa - e conseqüentemente, digere mal a autonomia da cidadania e a soberania do Estado.
Por ser instituição burocratizada altamente complexa, a diversidade interna da Igreja Católica lhe permite um portfólio de exemplos de religiosos com atuação religiosa e social impecável, para contrapor aos abusos agora denunciados. O reconhecimento do drama vivido pelas vítimas, mesmo a indenização pecuniária, nada retira do caráter irreversível do dano causado a quem sofreu a violência sexual, em particular sendo criança, que perdeu o direito à inocência, pela ação de quem supunha ser seu guia. O uso da autoridade como forma privilegiada de cometer o abuso é aviltante para as relações de autoridade e para o próprio sentido educativo dessas relações.
A lentidão em reconhecer os casos de abuso e pedofilia, em diferentes países, como o Brasil, é a outra face da moeda, que credita à Igreja Católica o poder de a tudo julgar e tudo determinar na vida humana, inclusive interferindo em políticas públicas. É o caso das pressões sobre o 3º PNDH, para os temas de retirada dos símbolos religiosos de estabelecimentos públicos, reconhecimento da autonomia das mulheres, em caso de aborto, e das uniões homoafetivas, incluindo adoção de filhos. Ignora que seus fiéis, se convictos, não serão obrigados a coisa alguma que contrarie sua doutrina, por uma lei que se proponha como possibilidade.
Porque a lógica do interesse público precisa pautar-se por atender a toda a cidadania, sem discriminação, cabendo às denominações religiosas convencer seus membros a que atendam as determinações morais que pregam, definindo o que é pecado, e não ao Estado, que lida apenas com o que é crime. Quem for convicto seguirá os ditames da religião sem titubear, ainda que as leis ofereçam possibilidades a si vetadas pelas normas religiosas. Se uma denominação religiosa proíbe o álcool, não será a existência de bares que convencerá o seu adepto a provar da bebida.
Ao tomar conhecimento de infratores em suas fileiras, e imediatamente encobri-los, o que o Vaticano reitera é sua disposição de ser soberano por sobre a ordem humana, que é plural do ponto de vista religioso e de consciência, mesmo quando os atos cometidos - pecados ou não - são terrível e simplesmente enquadráveis como possíveis crimes, cabendo, pois, ao Estado investigar e julgar, de forma pública e transparente, o que apenas engrandecerá a instituição religiosa por abrir-se com coragem, prevenindo semelhantes situações.


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ROSELI FISCHMANN é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da USP, coordena o Núcleo de Educação em Direitos Humanos da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo. Publicou, entre outros, o livro "Estado Laico" (Memorial da América Latina).
Fonte: Folha de S.Paulo - 29/03/2010

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